O sucesso de Zeca Pagodinho tem uma importância para além da música. Zeca Pagodinho lembra meu avô. Eu vivi até os 8 anos no Rocha, subúrbio perto do Méier no Rio, ao lado da casa de meu avô, que era um perfeito carioca. Meu avô foi um belo retrato do Brasil dos anos 40/50. Era um malandro carioca - em volta dele, gravitavam o botequim, a gravata com alfinete de pérola o sapato bicolor, o cabelo com Gumex, o chapéu-palheta, o relógio de corrente, seu "Patek Phillipe" tão invejado; em volta dele ressoava a língua carioca mais pura e linda, com velhas gírias ("Essa matula do Flamengo é turuna!..."). Meu avô era orgulhoso de viver nesta cidade baldia e amada, o Rio que soava nas ondas do rádio, o Rio precário e poético, dos esfomeados malandros da Lapa, das mulheres sem malho e de seus sofrimentos românticos, entre varizes e celulite. Antes de morrer, ele me olhou, já meio lélé, e disse a frase mais linda: "É chato morrer, seu Arnaldinho, porque eu nunca mais vou à Avenida Rio Branco."
Por isso, ele me lembra o Zeca Pagodinho - ou melhor, o contrário - mas, tanto faz, porque não falo do Zeca por nostalgia não, nem por "amor às raízes" nem por um regressismo babaca a uma "autenticidade brasileira". Não é nada disso. Ele não nos traz nada "de volta". Zeca apenas reafirmou uma música e um comportamento carioca que sempre estiveram aí e que andavam soterrados debaixo dessa montanha de superficialidades que a indústria cultural produz, transformando os sambistas em bandos de neguinhos oportunistas que dançam com sorrisinhos de puxa-sacos na TV, com bundas de mulatas voando pelos palcos. As velhas-guardas eram "guardadas" como tesouro para nostálgicos se deliciarem. Zeca foi lá e tirou a velha-guarda do gueto e provou que a grande música popular continua a ser produzida nas periferias; só não é distribuída. Zeca revitaliza o partido alto, o samba de terreiro, a ética popular dos subúrbios e revela talentos desconhecidos que não tocavam no rádio. Zeca se vinga e vende milhões de discos. Zeca prova que o popular pode ser profundo, uma luz nova para re-vitalizar o país.
Zeca está fazendo esse sucesso imenso não apenas pela qualidade de seu trabalho. É também porque ele traz com seu carisma, um comportamento que existe na lembrança, quase no DNA dos brasileiros. Ele traz gestos, olhares, um jeito de cantar com a voz vagamente debochada, entre desconfiada e esperta dos antigos malandros com sua sabedoria inculta de fugir do trabalho, dos "safados" (os negros que se safavam), que tinham a inteligência "crítica" da vagabundagem carioca, recusando a exploração e saindo de banda para o prazer e a "viração".
Depois do período vergonhoso dos pagodes de butique, dos "tchans" na boca-da-garrafa, Zeca Pagodinho nos trouxe o fundo de quintal do subúrbio, o cabrito do seu Benedito, trouxe a cachacinha das mesas de botequim, a cervejinha musical, trouxe o doce machismo de malandros sofrendo por "patroas" e vadias, trouxe a elegância dos homens que sabiam dos perigos da vida, das sacanagens que a policia, políticos e patrões sempre aprontaram para os poetas populares.
Vivemos hoje num tempo em que os pobres são vistos ou como criminosos ou como desgraçados. As elites acham que pobre ou morre na enchente ou mata nas ruas. Zeca coloca no ar a voz pacífica e "desgrilada" dos desvalidos, seu ritmo de viver. Zeca traz um tempo mais calmo, uma fala e um canto mais lentos, cheios de gingas e fintas, zanzando no ritmo de viver suburbanamente, longe da velocidade infernal dos clipes, zips e zaps. Não há pressa, não há sufoco, mesmo dentro do sufoco; há uma satisfação conformada com o dia-a-dia sofrido, mas esperançoso: "é..cumpadi...tá ruim, mas vai melhorar...".
Depois de 68, (politicamente) e depois dos anos 80 (culturalmente), creio que alguma coisa essencial se havia perdido no Brasil. O malandro carioca - e tudo que ele inventou de leveza de preto forro, com o salto bailarino de escapista do "batente" - virou um pivetinho de fincaria. Nos anos 30 e 40, o malandro e sua cultura, principalmente na música popular, encarnavam a inconsciente defesa de um mundo livre, numa linhagem clara desde "o tempo do Rei". Perdeu-se o floreio, a delicadeza de um cotidiano material pobre, mas nítido, precário, mas habitado por personagens dignas e orgulhosas de sua tradição, no meio do banzé das classes urbanas.
Depois, o malando foi substituído pelo pilantra. O simplismo da indústria cultural de massas criou um empobrecimento artístico proposital. O malandro, essa figura meio "malazartes" de nossa história tinha uma linguagem e uma ética. No início dos anos 70, o pilantra triunfa com Simonal, Carlos Imperial, duplas malemolentes como Antonio Carlos e Jocafi, Brazucas etc... Surge o malandro de "mercado", o malandro querendo descolar um lugar na sociedade do "milagre". Os malandros tinham sumido. Zeca re-apresentou-o, hoje, nessa terra de corruptos e picaretas. O pilantra é o malandro oportunista.
Zeca com sua voz, com seu ritmo e tom, com os objetos de seu mundo nos propõe até mesmo uma mensagem política - sem pensar nisso, claro. Ele canta desconfiado dessas modernidades escrotas que nos cercam. Ele recupera o olho-vivo, um olho no gato outro no peixe fritando, ele não se deixa enrolar, deixa a vida lhe levar, não acreditando em mumunhas de "globalização" e coisa e tal, pois sabe que está "assim de gavião" em cima de nós, dentro e fora do Brasil. Zeca nos lembra que temos de viver o mundo de hoje, que temos o direito também de comer caviar, mas sem esquecer que não podemos tirar muita "chinfra", porque passamos séculos "vivendo na vala e pescando muçum"...
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